João Paulo Vaz
Sobre o granito cinza da pia, ao lado dos vasilhames em que as carnes salgadas estão de molho desde a véspera, Carolina ajeita a tábua de corte com as carnes frescas, a linguiça e o paio. Confere as batatas, as cenouras, o pedaço de abóbora, as raízes terrosas de aipim, as espigas de milho, as folhas de couve amarradas, metade de um repolho roxo, quatro cebolas, duas cabeças de alho, as batatas-doces esverdeadas, os nabos, os inhames descabelados e a braçada de cheiro verde. No silêncio matinal da cozinha, aprova a quantidade e a qualidade de cada ingrediente, tira do fundo do armário a panela grande de fazer cozido e uma outra para o pirão, escolhe na gaveta duas colheres de pau e olha o relógio na parede: sete horas.
A família vai se reunir na velha casa, para o almoço.
Carolina descasca e pica as duas cabeças de alho lembrando de como o marido reclamava do cheiro nas suas mãos. Por causa dele, passou a lavá-las com limão, mas abandonou o hábito depois que ele morreu. Agora corta as cebolas pensando nele e deixando as lágrimas escorrerem à vontade até pingarem no avental. Mais um cozido sem Francisco que gostava tanto, mas os filhos e os netos vão encher a mesa e a casa com suas vozes.
Refoga o alho até começar a dourar, ou melhor, até um instante antes, porque assim é o tempo da cozinha, é preciso adiantar-se a ele, surpreendê-lo antes da curva. “Até começar a dourar” é como dizem os livros de culinária porque não podem dizer de outra forma, mas, na verdade, o momento certo de jogar a cebola é um instante antes. Tem que ser intuído. É preciso olhar o alho fritando na panela e adivinhar seu tempo. Tal como os filhos.
De quanto tempo ainda precisará Pedro, o mais velho – quase quarentão e entendendo tão pouco a vida? Foi dura com ele ontem. Mas ele precisa de um tranco de vez em quando. Tomara que não tenha desistido de trazer a nova mulher, a terceira – ou será a quarta? Meu Deus, como é mesmo o nome dela? Talvez não devesse servir nas panelas. Tão cheio de poses o Pedro. De onde tirou isso? Dos pais não foi. Mas virá com os filhos e essa é a melhor parte do almoço: os três netos de dois casamentos, felizes de passarem o dia juntos e nessa casa.
Despeja as cebolas cortadas, escuta o chiado delas no óleo quente e mexe feliz o refogado, reavivando o som a cada volta da colher, até reduzi-lo a um sussurro uniforme. Então, sobre o leito de alho e cebola, deposita os pedaços de carne fresca, levantando uma nova orquestra de assobios e enchendo a cozinha de cheiros.
Enquanto refoga a carne, enlameia as mãos tirando a casca escura do aipim, contente com a brancura que se descobre. Não importa quantas vezes repita esse ato, maravilhava-se sempre com essa carne clara engendrada na escuridão da terra. Assim é Joana, a segunda filha – clara e pura sob a casca grossa. A filha gerada e parida durante o período pior da ditadura: o marido clandestino, a ansiedade e o medo constantes por notícias, os homens horríveis de terno escuro e cabelos muito curtos invadindo a casa, mostrando armas, revirando estantes. Lava bem os aipins, a pia, as mãos, até ficarem apenas os pedaços muito brancos numa vasilha de água cristalina.
“Amor, aquela mala menor, prepara pra mim depressa que um companheiro vai passar aí e pegar”. Jamais vai esquecer esse telefonema. Lembra o tom exato de cada palavra, o som de cada sílaba, o vestido que ela estava usando, a luz do final de tarde atravessando a veneziana da sala. E aquela frase no ar, confirmando o que ela tanto previra e temera mas só naquele momento preciso percebia que não tinha acreditado por um único instante que fosse possível. Os dois mudos de espanto ao telefone por um tempo que pareceu imenso. “Não posso explicar agora. Assim que puder, mando notícias”. Ela achou, pelo tom de voz, que ele se continha para não chorar. Ou seria ela?
A década de 70. A gravidez tinha sido confirmada na semana anterior, mas Joana só foi ver o pai pela primeira vez quase dez anos depois. Durante nove anos, ele foi apenas uma caixa de papelão cheia de cartas e fotografias.
Na panela, a carne começa a tomar cor e Carolina espalha sobre ela uma pitada de pimenta e quatro folhas de louro. Depois derrama devagar dois litros de água fervente, junta as carnes salgadas, o paio e as linguiças e fica olhando os pedaços dançarem entre as bolhas do caldo quente.
1973 foi o ano pior: dois meses sem notícias do marido. E as histórias terríveis que chegavam do Chile: La Moneda em chamas, o assassinato de Allende, os presos no Estádio Nacional, os punhos quebrados de Victor Jara, o horror inimaginável. As noites de pesadelo e o choro abafado no travesseiro para não acordar as crianças.
Só no final de novembro, uma carta de Paris refez o equilíbrio instável do seu mundo. Continuavam a ditadura, o exílio e a solidão. Mas Francisco estava vivo.
No caldo borbulhante, Carolina mergulha as espigas cortadas e se alegra com o amarelo vivo, solar, dos grãos de milho.
O terceiro filho – temporão – nasceu depois da anistia, de uma gravidez acidental por causa da euforia da volta de Francisco e da vida retomando seu rumo. ! 980: o maravilhoso desvario de ser mãe outra vez, aos 37 anos. Alegre, extrovertido, Daniel foi criado numa nova casa, sempre aberta e cheia de gente. Adolescente, desajustou-se da escola, da família, da vida, mas Carolina intuiu nele um ritmo próprio e contrariou todos, inclusive o marido, na resolução firme de deixar desabrochar, no tempo que foi necessário, o artista. Ainda hoje, a alegria de Daniel contagia e equilibra os irmãos, desarmando com suas risadas soltas tanto as ambições tolas de Pedro quanto a seriedade ríspida de Joana. Nunca se zangam com ele. Daniel tem o dom de revelar o melhor de cada um deles.
Enquanto as carnes e o milho cozinham, Carolina descasca os legumes com o automatismo preciso que só os gestos repetidos ao longo dos anos alcançam. Sob as mãos exatas que comandam a faca, batatas, cenouras, nabos e abóbora vão revelando sobre a pia suas cores e formas variadas.
Tão diferentes os três. Pedro e seus planos mirabolantes, sempre na véspera do negócio fabuloso que vai fazer dele um milionário. Joana e sua acidez crítica, sua inteligência contundente, sempre em guarda, sempre pronta a encobrir a sensibilidade extrema que só muito de perto se percebe. Uma e outro, porém, ligados demais no futuro – ele nos sonhos de fortuna, ela no de um mundo mais justo. Já em Daniel, ao contrário, assusta o desapego total a tudo que não esteja aqui e agora.
À medida em que vão perdendo a casca, os inhames arredondados escorregam como sabão entre a mão e a faca. Carolina se concentra no equilíbrio difícil entre segurar firme e não apertar, em dosar a pressão exata de cada dedo.
Talvez tenha pressionado Pedro demais ontem à noite. Ele e sua conversa cheia de curvas, repetindo solene o sobrenome da nova mulher que Carolina não conseguiu guardar nem entender que importância tinha. Tantas voltas, até descobrir que o problema dele era saber se Joana viria com a companheira. “Claro. E se isso for um problema para a sua nova mulher, é melhor ela nem vir”.
Há oito anos, quando Joana se juntou a Renata, a família estremeceu, cindida entre os que toleravam ou não. Carolina atropelou uns e outros com sua aceitação incondicional, seu amor independente de qualquer convenção. E acabou criando com Renata uma ligação mais forte do que jamais chegou perto de ter com as mulheres dos filhos. As de Pedro ela mal suporta e as de Daniel, embora simpáticas, são tantas e tão transitórias que Carolina, para não confundir os nomes, chama todas de “minha filha”.
Mergulha com cuidado o aipim no caldo fervente.
Conspiradoras num mundo ainda tão masculino, Carolina, Joana e Renata têm um pacto de cumplicidade, um sistema sutil de acordos, alianças e mensagens implícitas de que os filhos homens nem desconfiam.
Cozinhar exige reverência ao tempo. Como num altar, os legumes estão distribuídos sobre o granito da pia conforme seus tempos de cozimento e Carolina espera o aipim começar a cozinhar para ir juntando depois cada um dos outros e as verduras por último.
Aos 14 anos, Joana acompanhava Francisco aos comícios pelas diretas. Não havia perigo, ele dizia, os tempos eram outros. E a consciência da fragilidade deles pesava sobre Carolina, mas ela engolia seus medos em favor da aliança entre pai e filha, do tempo de estarem juntos. Na época das passeatas contra Collor, já era a filha que levava o pai à rua e a uma fonte nova de energia quando a saúde e a esperança dele já estavam no fim.
Desliga o fogo sob a panela grande, passa uma parte do caldo para a outra panela e junta aos poucos a farinha de mesa, misturando sem parar, sobre o fogo baixo. Nas voltas cada vez mais pesadas da colher, os grãos de farinha absorvem o molho, incham, e o caldo vira pirão. Os processos da cozinha e seus tempos. É incorporando o tempo que carnes, legumes e verduras se transformam em cozido; a farinha e o caldo em pirão. O tempo capturado por ela – eis o que vai alimentar sua família, daqui a algumas horas.
Daqui a dois meses, pela primeira vez, um ex-operário vai presidir o país. Como Francisco teria gostado de viver isso!
Tampa as panelas e, sobre a tábua de corte, pica a salsa e a cebolinha que vai misturar ao pirão quando for aquecer o almoço. Do fio sereno da faca brotam todos os tons de verde. As pequenas rodelas de cebolinha alegram o granito cinza da pia, e o aroma primaveril da salsa invade a cozinha.
Logo vão chegar os netos, quebrando o silêncio da casa.
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